Existe uma guerra em curso na Colômbia?
Marcelo Buzetto[i]
A questão da libertação das “reféns” que estavam sob a guarda das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia - Exército do Povo (FARC-EP), intermediada pelo presidente da Venezuela, Hugo Chávez, gerou polêmicas e estimulou o debate sobre a natureza do conflito colombiano.
Desde 1948 existem, na Colômbia, movimentos guerrilheiros organizados por camponeses e trabalhadores. O aumento da repressão, da perseguição política e dos constantes assassinatos de lideranças populares, aliado à completa ausência de liberdades democráticas, tais como a liberdade de expressão e de opinião, a liberdade de organização sindical e partidária, além das violações contra os direitos humanos criou as condições necessárias para o acirramento do conflito naquele país.
Entre 1948 e 1964 começam a se desenvolver novas formas de luta e de protesto em toda a América Latina e, após a vitória da Revolução Cubana em 1959, muitos movimentos organizados decidem seguir o caminho da luta guerrilheira como mais uma forma de enfrentamento contra os interesses da classe dominante em seu país. É o que ocorre também na Colômbia.
Durante os anos 60 e 70 observamos a multiplicação de organizações político-militares de esquerda em todo o continente. Só para citar algumas: Ação Libertadora Nacional (ANL-Brasil), Exército Revolucionário do Povo (ERP-Argentina), Movimento de Esquerda Revolucionária (MIR-Chile), Movimento de Libertação Nacional-Tupamaros (MNL-T, Uruguai), Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN- Nicarágua), Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN- El Salvador), entre outros.
Na Colômbia, em 1964, nascem as duas mais importantes (mas não as únicas) organizações político-militares de esquerda: FARC-EP e Exército de Libertação Nacional (ELN). Elas se estruturam como uma força política e militar, com seus membros identificados pelos uniformes e símbolos, com responsáveis que assumem publicamente a representação da organização perante a sociedade ou os governos locais, regional ou nacional, portanto, esse tipo de organização adotada pelas FARC-EP e ELN faz com que lutem pelo reconhecimento internacional de que as mesmas são forças beligerantes, insurgentes, e não organizações terroristas ou criminosas.
Esse tipo de situação não é exclusiva da Colômbia. Nas relações internacionais contemporâneas, tivemos condições de observar inúmeras situações de conflito que começaram com a luta armada ou a guerra de guerrilhas e, depois de algumas décadas, chegaram a soluções políticas. Em muitas situações os problemas econômicos e sociais enfrentados pela população mais pobre, apesar do fim da guerra e da luta armada, continuaram existindo, ou até aumentaram. Portanto, o fim de uma guerra ou de um conflito armado entre forças políticas e sociais contrárias não significa a resolução dos problemas que eram identificados como sendo a causa desses mesmos conflitos.
Podemos citar alguns casos, tais como: 1) reconhecimento como força beligerante e movimento legítimo de luta pela libertação nacional da OLP (Organização Para Libertação da Palestina), que em 1974 foi convidada para participar numa sessão da Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), e seu líder Yasser Arafat teve o direito de falar e explicar a situação de seu povo para o mundo; 2) a situação da Irlanda do Norte, onde o reconhecimento do Exército Republicano Irlandês (IRA), por parte do governo da Inglaterra, como uma força política-militar representante de um setor importante do povo irlandês levou a negociações que permitiram a incorporação de muitos guerrilheiros à luta política-institucional através do partido político Sinn Fein (expressão político-partidária daquele movimento guerrilheiro); 3) o passado recente da Colômbia, onde organizações guerrilheiras aceitaram se desarmar e se transformar em partido político (como foi o caso do Movimento Revolucionário 19 de Abril – M-19, que aceitaram uma anistia e depuseram as armas em 1989. O M-19 e a União Patriótica, organizações políticas formadas por ex-guerrilheiros tiveram mais de mil membros assassinados entre 1989 e 1999, o que fez com que as FARC-EP e ELN sempre olhassem com desconfiança as propostas de desarmamento e negociação do governo colombiano) ou a retomada das negociações com o governo para uma solução política para o conflito armado (como ocorreu com o antecessor de Álvaro Uribe, Andrés Pastrana, presidente colombiano que desmilitarizou uma área de 42 mil km² para as FARC-EP e uma de 5 mil km² para o ELN, e iniciou a negociação com a guerrilha).
As situações acima demonstram a incoerência e o equívoco das afirmações do atual presidente da Colômbia, que insiste em não levar o país para um processo de debate onde as organizações político-militares sejam reconhecidas como uma força real e com um projeto político que sugere radicais transformações econômicas e sociais.
A saída política para um conflito armado não é, em nenhuma situação, a garantia de que acabem os conflitos. A pobreza, o desemprego e as inúmeras injustiças sociais presentes no processo de desenvolvimento do capitalismo naquele país não desaparecerão, mesmo se houver uma saída negociada para o enfrentamento militar em curso. E é inegável que os problemas econômicos, sociais e políticos vividos pelos pobres da Colômbia tiveram (e tem) um papel determinante na origem e existência do tipo de situação pela qual hoje passa aquele país e aquele povo, portanto, esse é um fator que não poderá ser desconsiderado.
Enfim, existe, de fato, uma guerra?
Procurando resposta à pergunta feita no início deste texto, buscamos nos clássicos do pensamento estratégico a definição da guerra e suas modalidades. Segundo Clausewitz, “A guerra é, pois um ato de violência destinado a forçar o adversário a submeter-se à sua vontade (...) a guerra não é somente um ato político, mas um verdadeiro instrumento político, uma continuação das relações políticas, uma realização destas por outros meios” (Clausewitz, 1996:7 e 27). Já Mao Tsé Tung afirmava que “A guerra é a continuação da política. Nesse sentido a guerra é política e é, em si mesma, um ato político; desde os tempos mais antigos, nunca houve uma guerra que não tivesse caráter político (...) O objetivo da guerra não é outro senão “conservar as próprias forças e destruir o inimigo” (destruir o inimigo significa desarmá-lo ou “privá-lo da capacidade de resistir”, e não, destruir fisicamente todas as suas forças (...) A conservação das forças próprias e a destruição do inimigo, como objetivo da guerra, constituem a própria essência da guerra e o fundamento de todo e qualquer ato de guerra. Essa essência da guerra está presente em todas as atividades, desde o domínio da técnica ao domínio da estratégia” (Tsé Tung, 1975:241;247-249).
Também Ernesto Che Guevara, um dos ideólogos dos movimentos guerrilheiros na América Latina, segue o caminho Clausewitz, pois quando escreve seu texto Guerra de Guerrilhas: um método, afirma que “a guerra é sempre uma luta onde ambos os contendores tentam aniquilar um ao outro. Além da força, apelam para todos os subterfúgios, recorrem a todos os truques possíveis para conseguir este resultado” (Guevara, 1968:50). Nesse sentido, é possível responder positivamente à pergunta se existe uma guerra em curso na Colômbia.
Se há uma situação de guerra, resta definir que tipo de guerra, qual é a natureza desta guerra e quais são as forças envolvidas na mesma[ii].
Se considerarmos a existência de uma guerra civil, onde forças que representam e/ou apóiam o governo e a classe dominante se chocam com forças que representam e/ou apóiam a classe trabalhadora, teremos que deixar de lado a ingenuidade e reconhecer que não existem “reféns” ou “seqüestrados”, mas sim prisioneiros políticos, prisioneiros de guerra, que precisam ser tratados, por ambos os lados, de acordo com as convenções internacionais que tratam da guerra e os princípios do direito internacional humanitário.
A imprensa internacional tem falado muito dos presos mantidos pelas FARC-EP, mas silenciam diante da situação dos presos políticos mantidos no cárcere em condições subhumanas pelo governo do presidente colombiano Álvaro Uribe. Existem centenas ou milhares de cidadãos colombianos que são presos políticos, e nem todos são membros das organizações guerrilheiras. Existem sindicalistas, estudantes, camponeses, membros de movimentos de defesa dos direitos humanos, todos presos por expressar de diversas maneiras sua crítica com relação ao governo de Álvaro Uribe.
Portanto, podemos constatar que não existem liberdades democráticas na Colômbia. Talvez seja o país da América do Sul onde o processo de criminalização das lutas e movimentos sociais tenha alcançado o grau mais elevado de radicalidade.
Se existe uma guerra na Colômbia, ela é uma “guerra justa” ou uma “guerra injusta”?
Segundo Volcogónov, “O conteúdo político da guerra e sua avaliação social como justa ou injusta estão organicamente ligados entre si. A avaliação moral dos fenômenos históricos da sociedade burguesa tem sempre um sentido político de classe. Por isso a natureza classista da guerra é expressa pela sua caracterização político-moral. Esta caracterização não é arbitrária, ela expressa o papel objetivo de cada guerra nas condições históricas concretas. As guerras justas e injustas distinguem-se pelas suas metas progressistas ou reacionárias, libertadoras ou conquistadoras, das partes beligerantes (...) Qualquer guerra travada por um povo em nome da liberdade e do progresso social, pela libertação em face de exploração e do jugo nacional ou em defesa da sua independência estatal, contra um ataque agressivo, é uma guerra justa. Pelo contrário, qualquer guerra desencadeada pelos imperialistas com a finalidade de conquistar territórios alheios, de subjugar e pilhar outros povos, é uma guerra injusta (Volcogónov, 1978:60 e 61).
Dentro dessa análise classista sobre a guerra, as guerras de libertação nacional ou guerras revolucionárias se enquadrariam no campo das guerras justas, pois “o conceito de guerra de libertação nacional refere-se, primeiro, às guerras que começam como insurreições dos povos escravizados contra seus opressores, quando os patriotas são obrigados a pegar em armas depois de se terem esgotadas todas as possibilidades de oposição pacífica (...) As guerras de libertação nacional, tal como as guerras civis das classes oprimidas contra os exploradores, são sempre justas na sua essência e surgem como resposta à política imperialista de opressão nacional e social assente na violência mais bruta” (Dolgopólov, 1986: 43 e 52).
Não consideramos possível compreender profundamente o que está em jogo na Colômbia de hoje se fizermos análises influenciadas pelo desconhecimento, pelo preconceito, pela má fé, pela ingenuidade e pelo idealismo.
Não há saídas simplórias para o conflito na Colômbia. A situação exige bastante cautela e maturidade política das forças que se colocam no campo democrático, popular e socialista. Temos a certeza de que o povo colombiano e suas organizações representativas, principalmente as que defendem a classe trabalhadora, terão lucidez e coragem para continuar nesta luta pela paz e pelas transformações sociais. Certamente contarão com iniciativas importantes como foi (e é) a atuação do presidente da República Bolivariana da Venezuela, Hugo Chávez, e com a solidariedade de todos aqueles e aquelas que se mobilizam para construir um mundo sem imperialismo e sem guerras.
Bibliografia
CLAUSEWITZ, Carl Von. (1996). Da guerra. São Paulo, Martins Fontes.
DOLGOPÓLOV, E.. (1986). As guerras de libertação nacional na etapa atual. Moscou, Edições Progresso.
GUEVARA, Che. (1968). Guerra de Guerrilhas: um método. Editora Base.
TSÉ TUNG, Mao. (1975). “Sobre a guerra prolongada”. In: Obras escolhidas, Tomo II. Pequim, Edições em Línguas Estrangeiras.
VOLCOGÓNOV, D.. (1978). A doutrina marxista-leninista sobre a guerra e o exército. Moscou, Edições Progresso.
[i] Professor do Centro Universitário Fundação Santo André (CUFSA) e da Universidade Metodista de São Paulo (UMESP), coordenador do Núcleo de Estudos Latino-Americanos (NELAM-CUFSA), doutorando em Ciências Sociais pela PUC/SP, membro do Núcleo de Estudo de Ideologias e Lutas Sociais (NEILS/ PUC-SP), São Paulo, Brasil.
[ii] Um debate sobre este tema pode ser encontrado em Buzetto, Marcelo, As guerras de libertação nacional e o processo de expansão mundial do capital, revista Lutas Sociais, n. 11/12, São Paulo, NEILS/PUC-SP, 2004.
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